Kleiton & Kledir – 1984
Texto de JUAREZ FONSECA para o lançamento do quarto disco de Kleiton & Kledir
Assim à distância, a forma de uma cuia de chimarrão não difere muito de um côco com um canudinho dentro, para lhe tomarmos a água. Mas em close, as duas coisas são tão diferentes quanto as paisagens do Rio Grande do Sul e do Nordeste. Aí, um dia desses ofereceram um chimarrão ao velho Luiz Gonzaga e a primeira coisa que ele fez foi pegar a bomba (o “canudinho” do chimarrão) e, usando-o como uma colher, mexeu aquilo tudo, transformando o chimarrão em uma sopa de erva-mate com água dentro de cuia. O Lua só foi entender o riso do pessoal em volta, quando tentou chupar o líquido pela bomba e não saiu nem uma gota. Passou a cuia adiante, sem pedir maiores explicações, e ficou sem saber que não se pode mudar assim sem mais nem menos a posição da bomba, sob pena de entupi-la. Já um ator carioca, diante da mesma situação de ter que experimentar um mate, por cortesia (oferecê-lo é uma espécie de orgulho nacional dos gaúchos, algo como uma marca de hospitalidade), não teve dúvidas: tirou a bomba fora, e já ia beber o chimarrão usando a cuja como se fosse um copo, quando foi alertado de que iria se dar mal.
Histórias desse tipo acontecem com freqüência a pessoas que visitam o Rio Grande do Sul e cujo destino as coloca diante de um chimarrão pela primeira vez. Elas ficam completamente perdidas diante do desconhecido, e na maioria das vezes não gostam daquele chá quentíssimo e amargo. Mas há as que gostam, e até acabam adquirindo o hábito, do qual é difícil se livrar depois. O chimarrão e uma espécie de droga, que vicia o cidadão. Falando nisso, é freqüente também acontecer que gaúchos em viagem, levando sua porção de erva-mate na mala, sejam detidos em vistorias de aeroportos para explicar que pó verde é aquele. Mas onde entram Kleiton & Kledir nessa história toda?
Em primeiro lugar, uma das faixas fortes deste seu novo disco é Roda de Chimarrão, onde eles dizem que o mate “é o sabor do pampa, de boca em boca, de mão em mão”. E seguem, nessa como em outras faixas, usando expressões gaúchas – sejam elas campeiras ou urbanas. Em segundo lugar, a partir desse símbolo do chimarrão (verdadeiro logotipo gaúcho), Kleiton & Kledir reafirmam que sua gênese e sua síntese é o Rio Grande do Sul. Mas sem nenhuma xenofobia, como se pode ver neste e em qualquer de seus discos anteriores – são oito, contando os cinco em que atuavam como um grupo chamado Almôndegas. E a surpresa causada pela dupla depois que suas músicas e seu trabalho alcançaram o sucesso nacional, pode ser apontada como mais uma prova de que o Brasil conhece muito pouco a respeito do Rio Grande do Sul. De São Paulo para cima ainda persistem velhos chavões.
Por exemplo: o do gaúcho bigodudo, bonachão metido a valente, comedor de churrasco; o dos caudilhos; o da linda gente saudável e corada que ou é pecuarista ou é agricultora; o do destemido “centauro dos pampas”. O homem a cavalo, de botas, bombacha, chapelão de abas largas, de uma certa forma resume essa coisa. Todos esses tipos existiram e existem ainda, mas o Rio Grande do Sul de hoje é muito mais do que isso. E a projeção do trabalho de Kleiton & Kledir, apoiada em toda uma efervescência nova, vai se encarregando de ampliar conceitos, vai esclarecendo o Rio Grande moderno, onde, musicalmente falando, convivem a rancheira e o rock, o chote e o samba. Onde os punks cruzam nas ruas com os “néo-gaudérios” (a juventude que assumiu o regionalismo como forma de expressão, depois de muitos anos – décadas – em que isso era considerado careta, “coisa de grosso”).
Quando as primeiras músicas de Kleiton & Kledir começaram a ser ouvidas no rádio, em 74/75, viu-se que alguma coisa estava mudando. Eles e seu grupo Almôndegas foram uma espécie de pontas-de-lança de uma geração musical que não se sabia existir e que de repente emergiu como brotam cogumelos nos campos molhados. O primeiro disco do Almôndegas, lançado em 75, é um marco na história da nova música gaúcha. Hoje, ainda que não definida claramente como um “movimento”, ao nível de projeção nacional, essa música, que inclui todas as tendências, tomou conta do Rio Grande do Sul. Os próprios gaúchos menos avisados se espantam ao verificar o salto que a manifestação cultural deu no Rio Grande do Sul, envolvendo as novas gerações em cinema, teatro, literatura e, antes de tudo, música.
Kleiton & Kledir são pioneiros, porque entenderam cedo que um novo processo estava acontecendo. E se deram bem, porque também souberam decodificar esse processo, fazendo uma ponte entre o tradicional, o regional, e o novo, o universal. E depois de identificada uma nova forma, estava aberto o caminho por onde passam hoje dezenas de músicos, letristas e intérpretes. Que, por sua vez, vão identificando novas formas e abrindo novos caminhos. O Brasil vai conhecer muitos deles, não demora muito. Mas Kleiton & Kledir continuam construindo pontes, antes que isso aconteça, e quando os outros chegarem ao Brasil, não apenas não vão causar tanta surpresa, como poderão deixar de lado cenas informações que K & K já deram.
Neste quarto disco individual, eles vão fundo ao Rio Grande, sem deixar de lado suas vivências no Centro do país, sem deixar de lado a alma média do povo brasileiro, e sem deixar de lado, naturalmente, o mundo que, naturalmente, não pára de entrar nos corações e mentes das grandes cidades e das menores “bibocas” interioranas. De uma homenagem ao “Beijoqueiro”, feita ao ritmo do cha-cha-cha, K & K pulam para o ritmo meio funk de uma “Morena de São Paulo”. Daí para a canção romântica em “Tesouro” e em “Fundo do Mar”, passando pela alienígena “Can Can do Brasil”, este pais que “abre as pernas, feliz, pro FMI”. E vem a lembrança das grandes enchentes do Sul, em “Por Água Abaixo, e vem uma surpreendente – a primeira – marcha carnavalesca gravada pela dupla, “Pato Macho” (não quero nem saber se o pato é macho, eu quero é ovo). “Deu Prá Minha Bolinha” mistura chote com rock, e em “Bailão” K & K falam da manifestação popular gaúcha que corresponde ao forró. Em “Roda de Chimarrão”, faixa que tem o mais explícito ritmo gauchesco do disco, uma das atrações é o gaiteiro Renato Borghetti, ídolo da juventude néo-gaudéria, que este ano conseguiu a façanha de vender 100 mil cópias de seu LP de estréia, instrumental (!).
“Só Peço a Deus” é um momento especial do disco, a versão que Kedir fez para a música de um dos mais respeitados novos compositores argentinos, Leon Gieco. Aí está uma coisa importante, pois a dupla também acaba de gravar seu primeiro disco em espanhol, para o mercado da América Latina. A identificação é plena, pois por causa de seu tipo de formação histórica e cultural, em muitos casos o Rio Grande do Sul tem mais a ver com países como Uruguai e Argentina, do que com muitos estados brasileiros. Gieco é um dos convidados especiais desse LP em espanhol, ao lado de Mercedes Sosa. Keiton & Kledir ficaram muito amigos de Mercedes e também participaram das gravações do novo disco dela, cantando juntos seu primeiro grande sucesso, Vira Virou.
O novo disco da dupla sai quase dois anos depois do anterior, tempo em que eles viajaram por todo o Brasil, foram duas vezes a Buenos Aires e, entre algumas pequenas complicações burocráticas, como a mudança para casas separadas (antes viveram juntos desde o nascimento), pararam um pouco para dedicar-se à preparação do material para este disco. A produção do novo LP foi entregue ao experiente Mazola, que tem assinado as produções dos maiores nomes da MPB. Mas o estilo de Kleiton & Kledir, com humor, muito ritmo, canções abertas e ainda novas para o Brasil, está inteiro no disco. A modernidade do trabalho dos manos neutralizou qualquer clima exótico que alguém ainda pudesse sentir, mesmo diante de suas músicas de miolo mais regional. E a escalada agora é na direção de mais um Disco de Ouro, que certamente virá se a cronologia se mantiver. Foi assim: 50 mil cópias do primeiro disco, lançado em 80; mais de 90 mil do segundo, lançado em 82; mais de 120 mil do anterior, e aí o primeiro Disco de Ouro, recebido em maio de 83. E muitos outros gaúchos estão chegando, sob a torcida de Kleiton & Kledir, os Ramil de Pelotas que levaram trovas, milongas, vaneiras e chotes para o resto do Brasil. O chimarrão é apenas um detalhe – e um hábito que eles continuam mantendo.