Kleiton & Kledir – 1983
“Quando eu era assim
Bem menor
Não tive a fim, sei lá
De pensar em nós…”
Assim diz a letra de CORPO E ALMA, escrita por Kledir em homenagem ao seu irmão Kleiton (e a todos que viveram ou vivem a experiência de trabalhar em dupla), numa adaptação do clássico BRIDGE OVER TROUBLED WATER cantado por Simon & Garfunkel. Se, como confessa a música, ele não pensava, nem tampouco Kleiton, nada impedia que atuassem em conjunto como cantores requisitados nas festas familiares e de colégio.
Daquela época restou a foto que ilustra a contracapa e o encarte deste novo Lp – o terceiro da dupla Kleiton e Kledir na Ariola, gravadora onde iniciaram a fase atual de sua carreira, depois de alguns anos como integrantes do conjunto Almôndegas. Mas restou também e principalmente a continuidade de um trabalho hoje reconhecido e consagrado como dos mais conseqüentes e originais da MPB, um sopro renovador que do Rio Grande do Sul se espraiou pelo Brasil com rápido sucesso.
A imprensa apontou-os como pioneiros de um certo modismo gaúcho em voga no Rio, cidade que cantou (como de resto muitas outras) as gírias e expressões de uma Porto Alegre retratada em DEU PRA TI, os desafios tradicionalistas das trovas de galpão. Seria, então, uma onda regionalista, de fôlego curto e ar exótico? Nem pensar, como afirma aliás o título de uma das mais belas composições deste disco.
As raízes gaúchas estão fortemente presentes porque são, afinal, a própria essência da formação cultural de ambos, mas tão presentes quanto o compromisso que os dois têm para com a sua geração e com o mundo em que vivem. Da sua geração, Kleiton e Kledir assimilaram o som mais atual com as infinitas possibilidades de exploração melódica, depois de anos de estudo (arranjo, regência, teoria, violino, flauta, piano – e, no meio tempo, engenharia mecânica, em que Kledir é formado, e engenharia eletrônica, de que Kleiton tem o diploma) e de ouvidos ligados na música brasileira e internacional. Do mundo em que vivem eles cantam as belezas e as amarguras, numa poética em que o cotidiano vem quase sempre salpicado de humor e ironia.
E toda essa argamassa foi muito bem captada pelo público que superlota as suas apresentações e que comprou cerca de 100 mil cópias do Lp anterior, cuja faixa PAIXÃO é ainda sucesso nas rádios depois de um ano e meio do lançamento. Intencional foi o prazo decorrido até o lançamento atual, fora dos padrões comerciais das gravadoras, mas fundamental para que as cabeças estivessem bem assentadas depois do assédio e da movimentação que as cifras de público e vendagem provocaram. Associados ao produtor Wellington Luiz, responsável também pelo disco anterior, teve início em dezembro de 82 a aventura que se estenderia até Los Angeles, e que depois de muito trabalho e de dedicação exclusiva chega agora ao seu final.
“A gente é muito metido, né?”, brincam os dois, reconhecendo, no fundo, que cada etapa da realização do disco foi por eles discutida e analisada, além de compor, arranjar e tocar. Naum Alves de Sousa, criador da capa, artista premiadíssimo como cenógrafo, figurinista, desenhista, autor e diretor, e que até então só fizera três obras do gênero (FALSO BRILHANTE, de Elis Regina, para quem também criou a parte visual do show; JOGOS DE DANÇA, disco instrumental de Edu Lobo; e O GRANDE CIRCO MÍSTICO, também de Edu e de Chico Buarque), foi conquistado para a tarefa há cerca de um ano, quando na noite em que se conheceram num programa de televisão em São Paulo nasceu um longo papo e uma forte amizade entre os três. Com Naum houve inúmeras reuniões não só para a discussão de concepção do trabalho como para escolha de fotos, teor do encarte, etc., assim como em todas as fases da produção geral, até a mixagem em Los Angeles, acompanhada pelos dois passo a passo.
Mas os arranjos constituíram um capítulo especial, já que exigia-se uma abertura maior do que a atingida no disco passado. Assim, cinco das 10 faixas acabaram levando a assinatura dos brasileiros Luiz Avelar e Lincoln Olivetti e do norte-americano Erich Bulling (este responsável pelos metais em TÃO BONITO e LOUCO DE LUZ). Kleiton e Kledir explicam:
– Achávamos que quatro das músicas (TÔ QUE TÔ; VIVA e as bases de TÃO BONITO e LOUCO DE LUZ) tinham mais a ver com a expressão do Lincoln como arranjador do que qualquer outro que a gente conhece, além, é claro, de admirarmos a sua competência. Mas descobrimos que, além de tudo, ele era tão altamente profissional que com o maior entusiasmo e sensibilidade se adaptou ao nosso esquema, já que como arranjadores também temos idéias muito concretas sobre o que queremos para a nossa música. A sua precisão e o seu perfeccionismo se encaixavam nos nossos pontos de vista, como, por exemplo, gravar com a nossa banda, que há um ano e meio vem fazendo os shows conosco.
Da mesma forma desenvolveu-se o trabalho de Luizinho Avelar em NEM PENSAR. Já tendo participado do disco anterior, ele concordava que era mais fácil traduzir em sua linguagem o que de antemão sabia que os autores queriam. Para todos era essa a maneira acertada de fazer um trabalho criativo sem mudanças de rumo.
Na definição do repertório nenhum problema: a produção “caseira” permitia uma ampla escolha, sem falar no grupo da nova música gaúcha, a cujo trabalho estão atentos. Desta vez, o escolhido foi Bebeto Alves, com 433, em arranjo de Kledir que utiliza a voz aguda e penetrante do próprio Bebeto num vocalise instigante.
As demais, todas de autoria da dupla, em parceria ou isolados, têm em comum a curiosidade de apresentarem uma história. Assim é com O ANALISTA DE BAGE, que nasceu de um pedido de Luis Fernando Veríssimo, autor do livro, que queria urna trilha sonora para o filme a ser rodado. A composição ficou pronta antes mesmo do filme começar a ser realizado, e a letra de Kledir é praticamente a transposição das histórias e dos termos usados pelo analista, em estrofes de oito versos típicas da poesia gauchesca, sobre música regionalista criada por Kleiton depois de pesquisa no sul.
Sem a marca regionalista, mas com uma célula rítmica caracteristicamente sulista, SAIÇU (que em tupi-guarani quer dizer amar) foi feita por Kleiton para Gal Costa. Não para Gal cantar, ele esclarece, mas para ela mesma, pela emoção que teve ao assisti-la no show FANTASIA, no Canecão. “Eu só a tinha visto uma vez, há muito tempo, e achei-a linda no palco, me deu uma alegria imensa estar ali”. Foi talvez para dar a sua visão pessoal daquele momento que Kleiton resolveu gravá-la, apesar de já ter sido lançada por Olivia Hime em seu último Lp, numa interpretação e num arranjo de Francis Hime dos quais gosta muito. Mas o amor do título representa também o clima que envolveu a participação de Egberto Gismonti na faixa, com a sua sanfona, instrumento trazido do Oriente. Apesar de nunca ter tocado em discos de outros artistas, Gismonti cedeu ao empenho de Kleiton, sem nem mesmo saber quanto cobrar pelo trabalho: “tocou, e acho que gostou tanto que nem quis cobrar. A gente insistiu, ele foi saindo e dizendo que estava ali por prazer. E, realmente, nada no mundo pagaria aquele encontro magico”.
As homenagens, aliás, marcam quase todo o disco. Para Caetano Veloso Kledir fez a melodia de VIVA há cerca de três anos, inspirada em LUA DE SÃO JORGE, “um pouco marcha, um pouco afoxé e de repente um ritmo gauchesco que não tem nome específico”. E a letra recente confirma a sensação inicial de Kledir de que Caetano é uma pessoa feliz por estar vivendo, e de que a sua obra transmite essa felicidade. Para Tom Jobim, Kleiton e Kledir criaram uma paródia de ÁGUAS DE MARÇO, ÁGUAS DE DEZEMBRO, versão urbana do tema campestre cantado por Tom. “ÁGUAS DE MARÇO sempre me lembra o fim das férias – diz Kledir – enquanto AGUAS DE DEZEMBRO seria o começo, quando a gente tá louco das coisas da cidade, precisando fugir para o mundo da outra canção. Uma fala do espinho na mão e do corte no pé, e a outra no espinho da inflação e no corte do salário”.
LOUCO DE LUZ homenageia os aquarianos, pessoas com as cabeças voltadas para a era de Aquarius, assim como Kledir, que integra uma comunidade sediada na Venezuela, no sopé de um morro próximo a Caracas “Lá no alto existe um manicômio, e nós brincamos dizendo que não são só eles os loucos. Na busca da sabedoria (a luz) – diz ele – os aquarianos são também um pouco loucos, uma outra forma de loucura que vai igualmente fundo”. Já TÃO BONITO é uma salsa dedicada a Cuba, onde os dois estiveram em 81 participando do Festival de Varadero, “la playa más hermosa del mundo”. E foi esta beleza que justamente lhes chamou a atenção, pois das condições de vida do país estavam bem informados. Sabiam de sua história e de suas importantes conquistas, só não sabiam que Cuba era tão bonita. Impregnado daquele ritmo, Kledir sentiu a necessidade de expressar o seu deslumbramento e de reviver a experiência compartilhada com um grande grupo. Foram todos os artistas, músicos, técnicos, produtores e acompanhantes convocados para o coro, e a alegre noitada de gravação, regada a mojito (bebida típica cubana feita com rum, soda limonada, açúcar e hortelã), só não contou com quem tinha compromissos inadiáveis.
Com TÔ QUE TÔ, sucesso na voz de Simone, deu-se o mesmo que em SAIÇU. “Nós achamos um grande barato a gravação da Simone, com arranjo feito por um maestro americano. Não temos nada a acrescentar, está linda, mas não é a nossa visão da musica . Kleiton prossegue: a nossa e uma visão mais latina, e a parafernália eletrônica do Lincoln foi posta a serviço do bolero-rock que sempre esteve em nossas cabeças.
NEM PENSAR teve uma musa inspiradora, a atriz Mônica Torres, como aliás tiveram dois outros sucessos de Kledir, FONTE DA SAUDADE e PAIXÃO. Só que pela primeira vez a musa aparece de corpo presente (“mesmo porque as outras não tinham habilidades artísticas), dialogando nos intervalos finais que a melodia de Kleiton propicia e personalizando a Baby, apelido pelo qual era tratada no decorrer do romance.
Ao apagar das luzes, inclusive com a gravação da voz feita em Los Angeles por falta de tempo aqui, ficou pronta CORPO E ALMA, que estava sendo escrita lentamente, sem a preocupação de entrar no disco. Quando BRIDGE OVER TROUBLED WATER foi sucesso pela primeira vez Kleiton apaixonou-se pela canção e vivia cantando-a, de forma muito bonita, que permanecia na memória de Kledir. Com a volta da dupla Simon e Garfunkel em show e em disco, a música despertou em Kledir a emoção daquela vivência de dupla artística e de irmãos: “Apesar das brigas e das discussões, estamos juntos a vida inteira, numa ligação muito profunda, que só quem tem essa experiência dual, do yin e yang, do corpo e da alma, das coisas antagônicas que se complementam, pode talvez explicar”. Mas da letra original de Paul Simon, Kledir manteve apenas a idéia da solidariedade, voltada para Kleiton, a quem garante, comovido:
“Sei que a vida vai aprontar E o que vier, azar A dois é fácil segurar Se Deus deixar, viu Meu amigo Vou sempre estar aqui Junto a ti, feito corpo e alma Meu irmão, meu par”.
Texto de Mary Ventura